terça-feira, 27 de julho de 2010

TEATRO PARA DEUS?

"Eu não faço teatro para Deus!"

Leandro Fazolla

( leofazolla@gmail.com )

Cristão católico, graduando em História da Arte pela UERJ,

membro da Cenáculo Cia. Teatral.

Antes de entrar no tema propriamente dito, gostaria de fazer algumas ressalvas.

- Primeiro: não pretendo que este seja um artigo acadêmico de teatro ou de teologia. Na verdade, não pretendo nem mesmo que seja um artigo acadêmico. Caso contrário, teria que buscar bibliografias, autores e citações que viessem a fundamentar minhas colocações, coisa que não vou fazer.

- Segundo: quero deixar claro que não sou um teórico em teatro e nem formado em teologia. Minha formação, ainda em andamento, é em História da Arte. Por isso, peço desculpas pelas possíveis e prováveis informações equivocadas que venham a aparecer neste texto, principalmente em relação ao próprio teatro.

- Terceiro: as opiniões contidas neste texto são minhas, e unicamente minhas, não sendo, necessariamente, a visão da minha religião ou da companhia de teatro da qual participo.

Bem, vamos ao que interessa.

Um dos grandes questionamentos que tenho em relação ao Teatro Cristão, é exatamente a finalidade deste tipo de produção teatral. Muitos colocam em primeiro lugar a questão do uso do teatro como ferramenta de evangelização. Este tipo de trabalho foi amplamente adotado pela própria Igreja para converter novos fiéis, principalmente durante a Idade Média. Na verdade, desde os primórdios do Cristianismo, a arte, de forma geral, sempre foi uma ferramenta importante na propagação da Boa Nova. Quando poucos sabiam ler, os desenhos falavam e ensinavam para os cristãos sobre Jesus Cristo (Neste período, temos as imagens de Jesus Cristo como professor). Quando ainda tinham que se esconder dos imperadores romanos, os símbolos eram utilizados como forma dos cristãos reconhecerem uns aos outros (Como no caso do ICHTUS, o peixe formado por apenas duas linhas curvas). Porém, não podemos, em pleno século XXI, ignorar toda a História da Arte e utilizar parâmetros retrógrados para justificar a nossa produção contemporânea.

Com os contínuos questionamentos que ocorreram durante toda a história da humanidade, a arte foi caminhando cada vez mais para a independência de suas linguagens. Pouco a pouco, foi se desvinculando do utilitarismo, de razões que precisassem justificar sua existência. Não mais faríamos pintura para catequizar ou "enfeitar", não mais precisaríamos de razões para produzir obras de arte, porque estas se bastam por si mesmas. E é exatamente nesta linha de raciocínio que a arte chega até nós, sem precisar de razões, sem precisar de significados. Quantas vezes, vendo uma obra de arte contemporânea, não ficou o questionamento “O que isso significa?”. E a resposta é exatamente a que ninguém quer ouvir: “Isto não significa nada”. A obra de arte não precisa significar nada, remeter a nada, porque ela deve se bastar a si mesma. O único objetivo da obra de arte deve ser ela mesma. Por isso, quando perguntamos porque determinada propaganda, muito boa, não é obra de arte, a resposta é, inicialmente, simples: Porque não foi feita para ser obra de arte, foi feita para vender um produto. Pode ter qualidade de arte, mas o utilitarismo retira essa especificidade. Não pensem, porém, que isto é simples, muitos autores, críticos e pesquisadores divergem quanto a esses assuntos, ainda mais em tempos em que a arte, a tecnologia e as mídias estão em plena convergência.

E o que tudo isso tem a ver com teatro? Bem, tem a ver porque creio que o principal ponto em que devemos chegar é: Eu quero fazer teatro ou eu quero fazer catequese? Eu quero fazer teatro ou eu quero fazer um rito? Podemos utilizar o teatro como ferramenta, mas o que queremos fazer é realmente teatro? Afinal, o teatro sempre esteve presente em diversas formas de comunicação na sociedade. Trazendo para o âmbito das igrejas, as missas católicas, por exemplo, são uma grande teatralização. Dentro desta tradição, temos a consagração do vinho e da hóstia sagrada, remetendo diretamente à Santa Ceia. Ali, o objetivo principal é um culto, um rito. Não podemos dizer que o que está sendo feito perante a assembléia é uma apresentação teatral, pois o teatro implica certas especificidades. E eu creio que uma destas especificidades seja exatamente a presença de uma plateia. Como já coloquei, não sou teórico no assunto, mas não conheço apresentações teatrais que não sejam feitas com o objetivo de alcançar uma plateia, por menor que seja. Quando pensamos nas origens do teatro, nas festas a Baco, ali, sim, creio que haja algo em que o deus seja o objetivo final, assim como nos casos de manifestações indígenas em que teatralizações são feitas. Mas, novamente, não acredito que nestes casos esteja sendo feito teatro como o concebemos hoje, mas um rito que utiliza da linguagem do teatro para acontecer, e que , no caso da Grécia Antiga, acabou por gerá-lo. No filme Bodas de Sangue, Carlos Saura utiliza bailarinos e uma sala de dança para filmar o que se tornou uma espécie de musical. Já em Dogville, Lars von Trier utiliza um grande espaço aberto e um cenário ausente, dando a impressão de que assistimos a uma peça de teatro. Mas em ambos os casos, em nenhum momento temos dúvida de que o que vemos são filmes. Filmes que utilizam fragmentos da linguagem do teatro e da dança para acontecerem, mas que ainda assim são filmes. Porque, assim como todas as artes (antes do hibridismo que começa a acontecer principalmente no período pós-moderno), o cinema tem suas próprias especificidades.

Então, porque eu digo que não faço teatro para Deus? Porque, ao fazer teatro, eu tenho o intuito de atingir a uma plateia, e não a Deus. É para esta plateia que estou fazendo meu trabalho. E se o objetivo principal for fazer catequese utilizando o teatro como linguagem para evangelizar, aí mesmo é que acho que não devemos fazer para Deus, porque, posso estar errado, mas creio que todos concordamos que Ele não precisa ser evangelizado, não é? Acredito que possamos dizer que estamos fazendo teatro cristão para colaborar na obra de Deus, para nos deixarmos usar por Ele como instrumentos de comunicação, propagação de uma fé, mas ainda assim não estaremos fazendo isto para Ele enquanto receptor, e sim para uma plateia. Isto porque, como foi colocado por uma das congressistas durante o debate, ninguém ensaia meses, manda fazer figurino, pensa sonoplastia e iluminação, produz cenários e faz maquiagem para entrar num palco vazio e se apresentar para Deus. Pelo menos nenhum grupo que eu conheço se apresentou quando não havia, pelo menos, uma pessoa para assistir. Se fizéssemos para Deus, não apresentaríamos sem ninguém para assistir? Mas, se o fizéssemos dessa forma, ainda assim seria teatro ou seria um culto, um rito?

Acredito que o mais conveniente seria dizermos que fazemos teatro cristão porque nós acreditamos em uma obra, porque nós acreditamos em uma mensagem que deva ser partilhada, que deva ser sentida pelos outros. Acho inconveniente até mesmo dizermos que fazemos teatro para Deus porquê Ele precisa que anunciemos Sua palavra. Não creio que Ele precise disso, porque se calarem a voz dos profetas, as pedras falarão. Acho que o ideal é assumirmos que fazemos teatro cristão para uma plateia, porque nós acreditamos no que fazemos, porque nós sentimos a necessidade de partilhar, de comunicar, de transmitir a nossa arte aos outros. Porque aí, sim, quando estivermos fazendo teatro como transmissão, como comunicação, e não apenas como ensinamento, catequese, talvez aí cheguemos ao status de obra de arte, de teatro "de verdade". Porque a obra de arte se completa no outro. De nada valeria o teto da Capela Sistina se Michelangelo não tivesse o outro com o qual comunicou sua produção artística. Da Vinci nunca seria da Vinci se não houvesse o receptor. Talvez nós não possamos ser teatro se não houver plateia, assembléia, público ou como preferirem chamar.

Mas por que eu acredito ser tão problemático dizer que estamos fazendo teatro para Deus? Simplesmente porque Deus deixou de ser o objetivo para se tornar a muleta. Sim, muleta! Nós nos apoiamos em Deus quando não sabemos andar direito, ao invés de tentar dar o doloroso passo. Quantos não ouviram frases do tipo: “Se ninguém gostar, não liga, não. Porque você não faz para os outros, você faz para Deus”. Nós devemos, sim, fazer para o outro, porquê é nele que queremos manifestar Deus. Nós devemos fazer para o outro, porquê o outro é crítico, porque o outro não vai sentir Deus se a cena não comover de verdade, porque o outro não vai chorar, rir, refletir, se a coisa não estiver bem feita! Creio que aí está o grande problema em fazermos teatro para Deus: nas nossas mentes, acreditamos que Deus entende as nossas limitações, as nossas fraquezas. E já que Ele entende tudo isso, não precisamos buscar mais, não precisamos dar o nosso sangue pelo teatro cristão, porque, mesmo se a qualidade do trabalho não for boa, mesmo se ninguém gostar, nós estamos fazendo para Deus. E não estou dizendo que acreditemos que Ele mereça um trabalho de baixa qualidade. O que acontece é que nós conhecemos Sua misericórdia, e sabemos que Ele entende, e que mesmo nos dando o máximo, Ele se contenta com o mínimo que fazemos em Seu nome. E, assim, ficamos presos ao pouco. Continuamos usando Deus como muleta para nossa falta de força, nossa falta de comprometimento com o nosso trabalho, nossa falta de profissionalismo e disposição para correr atrás do que é necessário para evoluir.

Eu faço teatro para o outro, porque o outro é crítico, porque o outro vai rir se não estiver bem feito, porque o outro não vai aplaudir se não gostar, e assim, não vai sentir verdadeiramente Deus. Eu faço teatro para o outro, porque o outro só vai estar satisfeito quando eu der o meu melhor. E as coisas nas quais eu acredito, a minha fé, as minhas crenças, merecem que eu dê o meu melhor.

Por isso, mesmo com toda a polêmica, mesmo sendo incompreendido, mesmo tendo pessoas que ficaram “profundamente preocupadas” com a minha declaração, eu continuarei não fazendo teatro para Deus, porque ao fazer teatro para o outro, estarei dando ao meu trabalho e ao meu irmão o meu melhor e, em conseqüência, amando-o tanto quanto Deus me amou e quanto eu O amo.


FONTE: www.arenadecristo.net